"We should not be moral but we are, and all kinds of emotions that are very, very unwelcome creep in, and we have to deal with them. One of these emotions, which is completely useless and creeps in all the time is guilt. We should live in a society where guilt does not exist, right? But it does exist. So whenever guilt comes in we want to get rid of it because guilt is extremely painful and we are not here to experience pain. We deal with it because we cannot do anything else, but it´s not wanted.
Exorcism is necessary when the guilt has come in and you want to forget about it. You want to forget about certain experiences because they are forbidden. Sculpture needs so much physical involvement that you can rid yourself of demons through your sculpting."
Louise Bourgeois 1994
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Kátia Sá, 1999 |
Imaginário do corpo no avesso das imagens
De quem é aquele corpo? É de quem o habitar.
É um abrigo em construção.
Quando é que um corpo se torna casa do corpo?
Desde sempre, em pequenos gestos, a construção começa, a memória grava, emoldura, faz parede com mais ou menos janelas.
Todo o corpo é uma casa de cantos e recantos, lugares de sombra e passagens de luz a horas diferentes. O corpo move-se na sua casa, como em nenhuma outra, visita-se e re-visita-se, torce o pescoço para olhar em volta, perde-se e reencontra-se e recita-se como um poema aprendido.
Pode um corpo sair de casa, da sua? Pode um corpo ter várias casas?
Sair de uma para outra; sair de uma para nenhuma ainda?
Uma casa está sempre a tronar-se demasiado nossa, ou nós demasiado em casa. Um corpo demasiado bem instalado na suas paredes corre o risco de ter terminado a construção da sua casa, de estar prestes a ser feliz. É preciso sair. Mas digamos que não é bom não ter tido uma primeira casa bem sólida onde começar a sentir-se em casa e bem aconchegado, até ao momento sufocante do demasiado protegido, demasiado codificado com a decoração escolhida, por muito minimal que ela seja. Para nenhum lado se vai se não se vier de lado algum. E as casas que habitámos, as que nos habitaram, nunca nos abandonam totalmente, transformam-se na massa de construção de outras, as vindouras. E crescer, num certo sentido, é ir ficando cada vez mais pequeno, mais nu por baixo da roupa, dar cabo de todas as paredes acabadas para voltar a ser um grande desabrigado.
É preciso arriscar tudo. Estilhaçar o espelho.
No trabalho de criação, é preciso ser capaz de arrancar-se à pressão desse "ser que sou eu" e que se transporta ao outro lado do espelho exigindo coerência formal, a confirmação de uma identidade. Em criação, o que é preciso fazer à imagem do espelho é entrar nela em "si", arrancado a "si" sem si próprio.
Esvaziar-se de "si" e olhar-se apenas como uma carcaça que oferece miriades de possibilidades de abordagem. Aproveitar essa possibilidade única de entrar nos resíduos de mim sem mim, entrar nessa casa como se entra num armazém. E tudo o que se encontra dentro do armazém tem que ser arrancado à sua vida pessoal, colocado na palma da mão como se um objeto a fundo perdido se tratasse.
O tempo de vida do objeto criado é a sua parte inominável. Aquilo de que fala o avesso das imagens.
Paula Caspão, "Os Dois Lados do Espelho" in Aicnêtsixexistência, Real, 2001.